É estranho

Sempre estranhei diante o uso da palavra “estranho”; ou melhor, diante as pessoas que, salomônicamente, comentam a respeito de varias e sortidas situações, comportamentos, fatos ou até mesmo outras pessoas que sejam, proferindo a brilhante e exaustiva locução: “é estranho”; “que coisa estranha”; “que situação estranha”; “que pessoa estranha” e assim por diante. 

Vocês já pararam para pensar o que significa dizer “é estranho”? Qual é o significado iminente da palavra? Qual é a intenção comunicativa de quem está magistralmente esclarecendo algo sentenciando com o uso da palavra “estranho”? O que nós informa sobre ela? Bem a respeito da pessoa que a está usando? Sobre as suas capacidades comunicativas, seus processos de entendimento, suas perspectivas de visões e definição do mundo? 

Vamos refletir. 

Tem um velho psicólogo, que se chama Jean Piaget, que teorizou o desenvolvimento cognitivo da criança, ou seja como as pessoas evoluem. Segundo ele, o desenvolvimento age pela alternância de dois processos: o de “assimilação” e o de “acomodação”. “Assimilação" é quando a realidade externa, os estímulos, as informações, o mundo lá fora, encaixa-se e toma sentido dentro as estruturas e os entendimentos que você já tem.  “Acomodação” é quando a bagagem de realidade e eventos do que vem de fora foge tanto do que já se conhece que se torna impossível dar sentido e encaixar nas suas estruturas de significação até o ponto que a pessoa obriga-se a mudar essas estruturas  internas para criar novas capazes de dar sentido: ou seja evoluir. 

Pensem, por exemplo, a língua: ao idioma. Desde que vocês nasceram, no Brasil, foram mergulhados dentro a língua portuguesa. Portanto forma criando e aperfeiçoando estruturas linguisticas portuguesas. E consequentemente de pensamento, conforme a língua. Hoje, se escutaram uma palavra portuguesa nova, que vocês não conheciam até escuta-la, simplesmente a encaixam dentro o idioma português, e as suas estruturas, que você já tem e conhece. Ou seja, acrescenta o dicionário. Mas se vocês, em via de regra, escutaram, pela primeira vez, palavras francês, chineses ou italianas, porque viajaram, mudaram de pais ou qualquer outra razão, tendencialmente não vão entender nada porque não tem dentro estruturas linguisticas para dar significado a um idioma diferente. 
Certo? 
E aí o que acontece? 
Conforme as suas necessidades, ou vocês se mexem e começam aprender uma nova língua, criando novas estruturas internas que, inevitavelmente, irão mudar vocês; ou vocês recuam e diante um novo idioma deixarão sobrar apenas uma sequencia de sons sem sentido. Tanto mais "estranhos" quanto mais distantes e alheios dos sons que vocês são acostumados a escutar na língua que vocês conhecem. 
Mas aquela língua existe. E tem um povo que a fala. Alem do fato quer você a considere estranha. Alem do fato que não consiga assimila-la e não queira acomodar-se (no sentido de processo de acomodação, renovação). 

As pessoas costumam definir as realidades como “estranhas" bem quando se encontram nesse limbo de meio onde não conseguem assimilar dando sentido a realidade conforme ao que entendem e não querem ou não conseguem esforçar-se para mexer com si mesmos, deixando o conforto do conhecido, para renovar-se em busca de uma nova significação. 

É estranho” coloca facilmente a responsabilidade da ignorância na realidade que não se entende ao invés do que sobre a falta de vontade e de capacidade de renovação de si mesmos. Este não deixa de ser um ato violento. 
Assim como qualquer tipo de julgamento. 

Por exemplo, já ouvi inúmeras vezes me chamar de “estranho”: porque uso roupa que aqui não se costuma usar, como camisas e meias coloridas; ou não uso chinelos e camisetas de times de futebol para situações sociais. Porque não costumo parar para almoçar e tirar uma soneca depois. Porque gosto caminhar na rua simplesmente para me sentir parte do território e da minha cidade; gosto de passar o tempo livre na praça, sem nenhuma razão a não ser sentimento cívico, somente porque é de todos e, portanto, minha também. "Estranho" porque saio sozinho, não costumo dar conta das minhas escolhas e atos, nem sequer aos meus pais: faço coisas sem me preocupar do que os outros falam. Até tenho minhas ideias que não copio de ninguém. “Estranho” porque não gosto de carro, prefiro caminhar ou usar a bicicleta. Mesmo quando chove. Porque não consigo ficar em grupos co muitas pessoas por muito tempo. Aqueles churrascos que duram 6 horas e que terminam em tragos e babozeiras, não me cativam. Por tudo isto e mais me disseram que sou estranho

Mas conforme ao mesmo principio, poderia também achar “estranho” o beber litros de chimarrão que desafiam qualquer sensação fisiológica de sede; usar roupa de ginastica e sair para caminhar ao invés do que correr; sair grudados ao namorado/a para mostrar que o namoro é forte e/ou sentar-se ao lado deste/a em uma mesa ao invés do que na frente. Eu prefiro olhar na cara uma pessoa quando converso com ela, e não no ouvido ou no ombro dela. Poderia achar “estranho" usar o carro para fazer uma quadra ou reclamar porque o estacionamento mais próximo fica disponível a 100 metros. Poderia considerar como incrivelmente “estranha” a pratica de fazer negócios trocando coisas por coisas, do condicional que as lojas entregam aos possíveis clientes ou de comprar sem pagar: como se ter dividas fosse um direito. “Estranho" caminhar publicamente ostentando um palito na boca, não levar de volta o carrinho do supermercado lá onde se pegou depois te-lo usado, não sair de casa quando chove, atrasar ou desmarcar compromissos de ultima hora, escutar palestrantes que parecem mais homens de espetáculo do que gente de conteúdo, ter 40 igrejas diferentes e recorrer a “santos,  gurus e remédios” para resolver os problemas, as confusões e as impasses da sua própria vida. Poderia considerar muito estranho esse direito que, em geral percebe-se, de cada um acreditar-se ao centro do mundo, mais do que uma parte dele. De fazer filhos e entrega-los a babás ou empregadas para dar conta do que se escolheu viver sem puder vive-lo. De sexualizar tudo e considera a mulher como um corpo (e que especialmente sejam as mulheres a confirmar isso). E assim por diante. Tudo muito “estranho”. SQN. 

Pra mim, tudo isto, e mais, não é “estranho”. Não é estranho porque existe. Existia antes que eu chegasse e existirá depois, conforme aos rumos evolutivos. Tudo isto é apenas diferente. Do que eu sabia. Do que eu era. Portanto tudo isto se configura como uma oportunidade e um desafio para eu saber mais, ser mais, entender mais: evoluir. 

Algo que aceito com prazer. Com dificuldade mas com prazer. Como ao final, é crescer: evoluir. 

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