O casamento e a revolução do papa Francisco
Começamos de um pressuposto: a célula constitutiva da nossa
sociedade é a família. Isso é tão enraizado na história e nos neurônios da
gente que se eu perguntasse para qualquer um de vocês quais são as coisas que mais
“tem valor” na vida, com quase certeza você responderia: saúde e família. Não é
verdade?
E o que define e confere o reconhecimento de estado de
família na nossa sociedade é o casamento. Mas o que é, de verdade, um
casamento? Qual o seu significado? Quais as suas razões e funções culturais e
estruturais para a manutenção da nossa ordem social, assim como a conhecemos e
vivemos? Basicamente no momento em que, com o desenvolvimento da agricultura,
da criação dos bichos, etc., os bens começam a ser acumulados, nasce a
propriedade e o problema da sua transmissão por herança. Se tornou logo
necessário, por isso, garantir que os filhos, que receberiam as propriedades (e
o nome) dos homens produtivos pertencessem, sem sombra de dúvidas, a eles
mesmos e não a outros homens, para assim não desperdiçar e reduzir a herança, fragmentando-a
e distribuindo-a para quem seja. Para fazer isso era necessário vincular, de
maneira rígida e inviolável, a capacidade procriadora da mulher com aquele específico
homem. Daí o artefato cultural casamento, que, de fato, é um dispositivo de
garantia cívico-jurídico, que regulamenta a continuidade da transmissão da
propriedade e da produção através do controle da reprodução por meio de
vínculos e restrições. Nesse sentido, seja a mulher ou os filhos, não valem em
si mesmos, mas enquanto engrenagens funcionais a tutela e continuidade de um
mecanismo produtivo.
Tecnicamente o casamento é um artefato asséptico, como é
bem claro para todos os que se casam para garantir a aposentadoria, a pensão,
os direitos cívicos, a green card, etc., ou que lembram ainda, como uma vez,
eram os pais que combinavam os casamentos dos filhos por questões de negócios.
O “enriquecimento” da moral por meio da religião e do sentimento por meio da
literatura, da arte e das mídias de todas as épocas tem função de encorajar e
fortalecer psicologicamente o desejo e a ambição a autovincular-se para, ao
mesmo tempo, “ganhar” o próprio pertencer a uma estrutura social e bloquear o princípio
fundacional da ordem, ou seja da sociedade patriarcal. A fundada sobre o
“patri-munu”: o bem do pai, o patrimônio, a propriedade e o filho.
O fato que a religião cristã prevaleceu historicamente sobre
as outras religiões bem nas épocas de consolidação das sociedades patriarcais
se explica justamente pelo fato que é a religião do pai (patriarcal,
patrimônio, pai e filho, etc.). Toda a doutrina dogmática da igreja romana visa
coerentemente salvaguardar e fechar esse dispositivo. O casamento e a sua
função procriadora. Por isso o veto (e a exclusão dos sacramentos) à separação,
ao aborto, à camisinha, à homossexualidade, etc.
O que conta é a preservação da ordem. É a propriedade. É a
prioridade. O indivíduo é uma função que tem que se encaixar, quando não
submeter-se (veja-se bancos e dívidas) para a continuidade desse princípio
superior.
Esclarecida a premissa, conseguem dar-se conta do tamanho
revolucionário das declarações do papa Francisco na audiência dessa quarta-feira
em Roma? Ele declarou que tem casos, por exemplo, quando tem violência
psicológica ou física, para que a separação de um casal é algo moralmente
necessário e isso constitui um bem e uma libertação para os filhos. O tamanho
revolucionário, de um ponto de vista cultural e antropológico, dessa declaração
é enorme: reverte a ordem fundacional da nossa mesma sociedade, colocando e
libertando o bem-estar do indivíduo como prioridade.
Finalmente todas as
mulheres que, querendo ou não, aceitam de ter esmagada a própria dignidade em
nome do "amor para os filhos" ou do sentido moral do casamento tem o
caminho para dar-se conta que nenhum bem pode ser feito se não a partir de uma
condição de liberdade, interior, social ou relacional que seja. Sem liberdade
não tem amor. Esse tipo de amor é Deus.
Adoro esse papa. Espero que possa ter continuidade, mas
tenho minhas dúvidas. É perigoso demais!
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