SE DEUS QUISER
As
palavras expressam muito mais do que dizem. E eu, cívico, laico e que fiz cinco
anos de teologia na Universidade Católica de Milão, sempre estremeço ao escutar
a locução “se Deus quiser”, usada em cada frase, para finalizar qualquer
assunto.
Culturalmente, o
“sDq” parece uma posição clara na disputa teológica milenária entre
predestinação, livre arbítrio e responsabilidade do homem, com si mesmo e os
outros. Em particular, parece apoiar a visão ultracalvinista de um mundo já
totalmente alocado por vontade de Deus. Dele dependeria totalmente tudo o que
acontece: um destino abrangido entre fatalismo e predeterminação. Algo que tira
a responsabilidade do homem para as suas ações e a determinação dessas sobre os
efeitos, individuais ou sociais que sejam; essa abordagem à vida parece ser
ratificada por outras gírias recorrentes, tais como “pois é” e “fazer o quê?”,
que legitimam resignação, respeito a uma realidade independente ou superior à
própria vontade e determinação e reforçando a caraterística cultural brasileira
do paternalismo. Até mesmo as políticas de assistência social (PNAS),
baseadas metodologicamente sobre o funcionalismo de P. Freire, avigoram isso sustentando, no seu estatuto
oficial, que o Estado tem a tarefa de garantir a cada um o “seu lugar”. O seu
lugar?
E
o livre arbítrio? Fiquei “impressionado” em ouvir um nosso político pronunciar:
"graças a Deus estamos bem; não
temos nada mais a querer. Tomara que tudo continue assim. Se Deus quiser”.
Nossa,
mas então, está trabalhando para o quê? Um político nunca deveria pensar em si
mesmo e nunca se sentir satisfeito, justamente porque o seu trabalho é tomar
medidas para melhorar a condição das pessoas e da sociedade. E há sempre alguma
coisa para fazer neste sentido.
Que
seja claro. A Bíblia está cheia de versos que dizem que Deus é soberano e que
nos deu tudo o que existe; que já predestinou quem salvar e quem não. Esta é
uma verdade bíblica. Assim como a é o seu oposto: “quem se arrepende e crê será salvo, volte para mim e eu tornarei para
vós”. Em termos teológicos se chama de antinomia, ou seja, duas verdades
aparentemente contraditórias (assim como a natureza de Jesus e a doutrina da
Trindade) debatidas há 2000 anos, sem solução. Ou melhor, com soluções
diferentes: calvinismo e igreja evangélica de um lado; protestantismo e
arminianismo do outro. Mas nenhuma dessas é uma verdade absoluta, sendo-as as
duas.
O
ponto é que a soberania de Deus e o livre-arbítrio são como duas trilhas
paralelas: nunca se encontram. Aliás, o fariam sim. Mas mudando de referência:
após a morte: algo além da compreensão.
O ponto é que a nossa vida é um trem que viaja
apoiando-se sobre duas trilhas: livre arbítrio e soberania divina; dimensão
cívica e religiosa. Os cidadãos são ao mesmo tempo motoristas e passageiros.
Cabe a cada um de nós escolher a direção e guiar com responsabilidade civil e
respeito pelos outros, porque disso, essencialmente, depende a comunidade que a
gente constrói e vive no dia a dia, em nome de Deus ou da compaixão humana.
Então ao lado de um “se Deus quiser” valeria a pena assumir um "se Eu
quiser” para destacar a própria responsabilidade sobre a nossa realidade. Passem
um bom dia se dEUs quiser.
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