Antropologia do supermercado - Capítulo 1: a competência emocional

O supermercado é um templo privilegiado para observar e especular sobre as matrizes culturais subjacentes aos comportamentos e as dinâmicas individuais, familiares e grupais que, justamente, nesse “não-lugar”, como o definiria Marc Augé, vem expostas, produzidas e reproduzidas de maneira extremamente evidente. 

Veja só. 

Ontem. Meio-dia. Estava com pressa. Agenda lotada. Tinha tudo sincronizado. Mas como renunciar ao meu chocolate? Admito: sou chocólatra. Entrei. Comprei. Fui. Mas, já na rua, o deslumbramento. O chocolate estava com a embalagem aberta. Beleza. Pode acontecer. Quem sabe como vem transportados e/ou conservados esses produtos? Quantas excursões térmicas sofrem? Entre quantas mãos passam? Etc.

Bom, voltei. Ainda com maior afobação. Rapidamente avisei a atendente que ia trocar o produto. Já deixei a nota fiscal e me atirei entre corredores e prateleiras. Na saída, mostrei o produto, agradeci e fiz para voltar velozmente ao consultório. Não gosto de atrasar. Mas aí - para tudo - veio a chamada. “Senhor, senhor”. 
Pois não”? 
Espere, tenho que dar baixa no produto” 
(Putz, que isso? Mais uma complicação para uma coisa simples”, pensei). “Ok, ou seja”? Respondi.
 “Só compilar uma ficha para conferir”. 
Tá bom (Mas o código a barra serve para o que então? Somente para o preço?). 

E aqui veio o clímax. A moça, sem levantar a cabeça, ainda empenhada em desenvolver a sua “tarefa profissional”, com uma naturalidade que se emaranha com a distração, em automático me pergunta:
 “Senhor, qual é o seu nome”? 
Mas pra mim foi que nem uma paulada no ventre da consciência da minha liberdade cívico-democrática. 
Com licença”, perguntei: “por que precisa de uma identidade para uma troca de produto”? 
É que tenho que dar baixa”. 
Sim, isso a senhora já falou; mas o que tem a ver a identidade de um cliente com uma troca de produto”? 
E ela: “é que se faz assim”. 
E eu: “moça, entendo que foi instruída para fazer isso. Mas está pedindo a minha identidade pessoal e é um meu direito saber qual é o fundamento do pedido e o uso que quer fazer dela”. 

....Um, dois, três… A profissional ficou paralisada por alguns segundos; se contraiu progressivamente; deu de costas e fugiu chorando, deixando eu e mais outros clientes na fila, estupidamente atônitos.

Mas atônitos por quê? É tão incomum ver pessoas levando para o lado pessoal assuntos sobre os quais não se consegue mais argumentar além de uma pré-embalada fórmula-opinião memorizada, reproduzida e entregada em lugar de um cartão de visita de um pensamento? É tão raro ver pessoas reagir ao desconforto do confronto agindo agressivamente, atacando, excluindo, fugindo ou chorando? 

O ponto é que para crescer e evoluir enquanto pessoa adulta são necessárias competências emocionais e afetivas, além do que a instrução. É necessário saber ir além do conhecido, do simples e do fácil. Tornar-se construtores ativos de si mesmos, indo além de si mesmos, no respeito do outro. Mas quem e quando teria que educar um ser a buscar integridade e resiliência à vida? A família? A escola? A igreja? A empresa? Essa estrutura narcisista da sociedade é bem preocupante. E bem regressiva. 

Mas voltemos ao supermercado. Com a moça em meio ao surto, veio o funcionário mais velho. Olhei com sarcástica resignação. 
Desculpe senhor, a moça errou porque não precisa a identidade, sendo que está trocando um produto com o mesmo; precisaria se fosse diferente”. Falou o ilustre. 
Beleza, mas o que muda? O que tem a ver a identidade de uma pessoa com um protocolo interno de classificação e distribuição de produto”? 
Aqui sempre foi assim”. 
Senhor, não estou criticando os protocolos; estou querendo entendê-los. Os robôs são programados para executar sem entender. Eu sou um ser humano. Preciso entender o que me envolve e conhecer o que faço. Assim posso escolher. Isso se chama princípio de responsabilidade. O senhor sabe por que está fazendo o que está fazendo”? 
Não, não sei”. 


Ah tá. Ok. Mas seria curioso saber como votaram essas pessoas ou como escolhem os seus próprios parceiros! 

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